Naquela manhã de sexta feira, acordei antes que o bichinho da maçã acionasse o despertador. Tinha mala pra fazer, tomar banho, ficar pronto pra viagem em meia hora e ter sorte de chegar à rodoviária e encontrar passagem.
A noite de quinta, com o perdão do trocadilho, havia sido bem legal. Fui com uma amiga num aniversário de uma amiga dela, tipo essas coisas de amigo do amigo. Eu nem conhecia a garota, mas isso não importa. Dei muitas risadas, regadas a um bom vinho, comendo fondue de queijo, depois de chocolate, tudo uma delícia. Acabei chegando tarde em casa, quase direto pra cama.
Com a mochila pronta e banho tomado, chamei um taxi, terminando de me vestir, contando os segundos. Cheguei com tempo, comprei passagem, embarquei. Ufa!
Da mochila, tirei o kit básico para a viagem: fone de ouvido, casaco, boné, óculos escuros, tudo pronto, pluguei o cinto de segurança, aguardando a partida. Mais um final de semana fora de Goiânia. Expectativa da festa e tudo mais.
Já de aparelho na mão, escolhendo a trilha sonora para a viagem, observava atento as pessoas que entravam a bordo. Eis que de longe avisto uma simpática senhora conhecida, agora se apoiando numa bengala, mas trazendo no rosto a expressão de lucidez e força de que sempre foi portadora. Procurou por seu lugar, fez cara de paisagem em sinal de reprovação a gestos de pessoas deselegantes, que não respeitam idosos, se acomodou finalmente.
Eu olhava discretamente para aquela senhora, que não me reconheceu. Viajei no tempo. Voltei para o ano em que cheguei a Goiânia, naquela euforia de iniciar a vida acadêmica. Lembro exatamente o dia em que Natércia entrou na sala pela primeira vez. A sua expressão provocadora agradou alguns e espantou a outros. Eu fiquei meio entre os que se sentiram provocados.
Natércia Porto, (sim, é esse o sobrenome que não nega sua nacionalidade), era dessas professoras que mais se preocupava com aprendizado do que com métodos. Criticada e elogiada, alternadamente, se mantinha firme.
Das melhores lembranças que trago, destaco o costume que ela tinha de declamar os poemas de Fernando Pessoa com a eloquência e propriedades impressas em seu olhar com a expressão de verdade que me ganhou. Me lembro do poema que ela declamou e que decorei no dia seguinte, que foi o bastante para eu gostar do tal poeta português. Descrevo o poema abaixo, como homenagem a ela.
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Põe quanto és
No mínimo que fazes.
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive
Brilha, porque alta vive
Fernando Pessoa ( Ricardo Reis)
Imagem de Vik Muniz, surrupiada aqui
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